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Epitáfios que viram berços: Sótão da Tia Becas, uma viagem aos anos 50

Foto do escritor: Ana Rita RodriguesAna Rita Rodrigues

Atualizado: 5 de mai. de 2020




A memória das mensagens de amor já não é o que era. Ou, pelo menos, o esforço que exigia puxar essa memória morreu, há uns anos. Morreu quando a comunicação virtual inaugurou o congelamento das mensagens, que ficam cristalizadas nas janelas de conversação, a menos que sejamos nós a apagá-las, e tudo isto feito num estalar de dedos que demora segundos. Há 50 anos, recordar uma mensagem implicava vasculhar no baú pela carta recebida do amado que se pretendia recordar. Daí que as cartas, enquanto único garante dessa memória dos alguéns que se iam intersetando, fossem cuidadosamente preservadas e guardadas, em caixas que serviam de templo que as conservava. Mas, quando dois amantes despem as últimas vestes que os ancoram ao mundo, o que é que acontece às mensagens de amor trocadas entre si, através de correspondência epistolar? E, consequentemente, sendo as mensagens veiculadas nessas cartas a materialização da sua história, o que acontece à memória dessa? Sabendo que remetente e destinatário já sucumbiram, quem é que vai querer pegar naquilo que escreveram? Terão os seus escritos morrido com eles, apesar de as cartas ainda perdurarem? E a postais enviados a destinatários que já não mais vivem na morada endereçada nesse postal? Há cartas e postais que se perdem ainda durante a vida, que ficam encalhadas em cantos da casa que não lembram a ninguém a não ser por uma epifania súbita, ou que são encontradas de forma serendipitosa. Mas, o que acontece às cartas e aos postais que continuam a existir após a morte dos seus autores? Nada – talvez seja esta a resposta imediata. Talvez simplesmente fiquem entregues à passagem do tempo que deteriora o papel, amarelecendo-o, encardindo-o e ratando-o, adormecidas no interior de uma caixa de costura, a um canto resguardado da casa abandonada, entre estratos de pó. Tantas cartas hão de morrer assim, enquanto se fazem screenshots das janelas de conversação nas redes sociais, para enganar a caducidade da existência. Será assim? Talvez não. Paulo Machado é protagonista da ressurreição de histórias de amor e de relatos de quotidianos que não mais coincidem com os nossos, através das cartas e postais que os perpetuam no tempo, enquanto espécie de património imaterial, e que recrutou para o Sótão da Tia Becas, a sua loja de antiguidades. Para além de cartas e postais, fazem parte do recheio da loja centenas de outros objetos e artefactos que vão do século XIX à década de 1950, que os anos podem ter gasto à superfície, mas cuja polpa, feita de essência e história, continua intacta.



Percorrer a travessa de São Carlos, no Porto, implica saber que, ao passar no lote 22, uma certa pontada de curiosidade nos vai forçar a penetrar o vidro da montra e afunilar a vista nas grafonolas portáteis, máquinas de escrever, analógicas dos anos 50, placas toponímicas do Porto antigo, livros do século XIX, como “Campo de Flores”, de João de Deus, malas de enfermagem que são analepse para a Segunda Guerra Mundial, louças, instrumentos musicais, como harmónicas e violinos, entre tanto mais. Num dia normal, poder-se-ia entrar na loja, entre as 11h e as 19 horas. Porém, o avesso atual do mundo fez o Sótão fechar. Ainda assim, entremos nele, viaje-se na máquina do tempo museológica que é a sua loja, por via deste perfil sobre Paulo Machado e sobre este negócio de velharias que tem firmado a sua existência há coisa de 20 anos.




Foi por volta de 1990, no Castelo da Maia, que Paulo abriu a primeira loja deste ramo. Por influência do pai, que, diz o próprio, “não era um homem com muito dinheiro, mas com muito gosto”, foi desde cedo cultivando esta influência e gosto pelas antiguidades, indo a feiras, leilões, “comprando aqui e ali”, trajeto que terminou numa coleção diversa de objetos que, pela vastidão, conduziram a num cenário em que “já não sobrava espaço em casa para colocar mais peças ”, impulsionando a criação da loja. A questão do gosto pessoal, salienta Paulo, é precisamente um requisito para se trabalhar neste ramo: ninguém pode entregar-se ao negócio das velharias antenado pelo fito lucrativo. “Eu já entrei muito tarde nisto. Se fosse para ganhar dinheiro, teria entrado há 30 anos, quando valia a pena. A primeira razão é o gosto pessoal e o gozo que dá trabalhar no setor, e que, regra geral, é perpetuado pelas heranças e “linhagens” que os familiares nos deixam”. Acresce a proliferação das lojas neste ramo, que tornaram o negócio de velharias num lugar comum, contribuindo para um certo clima de concorrência.

Ainda assim, esse “gozo” continua a imperar, aliado à predisposição para a investigação, que diariamente se renova: “por vezes, surgem-nos peças para as quais olhamos, mas não sabemos o que são”. Assim, quando surge um objeto novo, diferente, nunca antes passado pelas mãos, é preciso investigar a sua história, estudar a sua funcionalidade, averiguar se existe à venda no mercado e, se existir, qual o preço que está a ser pedido. Aliás, é precisamente esse o primeiro passo para estipular o preço de um objeto que seja mais raro e único: “vai-se à secção de ‘Peças Vendidas’, no Ebay, e o preço que já foi dado por quem as comprou serve de referência para o preço das minhas peças”. Quando essa investigação é insuficiente para saber que preço estipular para uma peça, esta é levada a leilão, ficando a tarefa de taxar um preço entregue a entendidos na matéria, chegando “a atingir valores elevadíssimos”, o que ajuda a valorizar essa peça que, aos olhos de alguém que a desconhece, não passa de uma velha antiguidade inócua e corriqueira. É esta atitude que, insiste Paulo, torna a profissão interessante: descobrir coisas que são raridades valiosas e que, apesar de entretanto esquecidas, eram os objetos que existiam antes de o Ikea os fazer esquecer”. Paulo conta o exemplo de uma coleção de discos que comprou e que, após investigar, descobriu que apenas um desses discos valia 200 euros, valor longínquo daquele que Paulo pagou pela coleção inteira, feitas as contas. Reversamente, pode ainda ocorrer o cenário contrário, em que, ao invés de pagar um preço desvalorizado por uma peça, um leigo na matéria pode cair na artimanha de lhe ser cobrado um valor muito mais elevado do que aquilo que o artigo vale no mercado, mas que, precisamente por ser leigo na matéria, não vai desconfiar, acabando por o comprar ao preço pedido. Esta dualidade de cenários serve precisamente para reforçar o papel que essa investigação assume, e que deve ser reciprocamente realizada: não só por parte de quem vende, como também por parte de quem compra.


"Este é um mercado de Saudosismo"

Falar em raridades implica evocar peças como “um cartaz dos anos 50, da Pelican, que já não existe em mais lado nenhum”, bem como o ‘escarificador’, “máquina utilizada em alternativa às antigas sangrias medicinais, através das quais se recorria a sanguessugas para limpar o sangue”, um dos objetos que, revela Paulo, “até nos faz questionar por que raio é que alguém vai querer adquirir? Só pelo gosto de colecionar. Jamais para fins utilitários. Há muita coisa neste negócio que ninguém utiliza, mas que, ou por isso mesmo, é colecionável”. Paralelamente aos colecionadores, há ainda os clientes saudosos, que procuram determinadas peças que marcaram a sua infância, pela vontade de reaver a sua cultura e incuti-la numa época onde essa cultura é já defunta e alheia às gerações que surgem. Por esta razão é que Paulo confessa que este é um “mercado de Saudosismo”, ilustrando com o exemplo dos brinquedos de criança.


Para além das feiras e leilões onde Paulo foi angariando as peças, acrescem ainda antigos colecionadores ou mesmo todos aqueles que já não sabem o que fazer com as quinquilharias antigas, e que chamam Paulo para desentupir o sótão, levando-as para o Seu. Um exemplo, refere o próprio, são os designados Móveis Renascença, de início de século, que “a generalidade das pessoas já não quer nem dados”, chegando-se mesmo ao caso em que “quando as pessoas não têm consciência do valor das peças, deitam-nas ao lixo”. A essas peças acrescem as que chegam à loja “tão estragadas, que o gozo é mandá-las restaurar para só depois serem colocadas à venda.”


Mas, não só de colecionadores e saudosos vive o público deste Sótão-Museu. Também de curiosos. Leonardo Patrício, músico de 21 anos e natural de Viseu, é exemplo. Conta que já frequentava lojas de velharias antes de descobrir a de Paulo, por recomendação da amiga Mafalda que a costumava visitar de quando em vez e que fez despertar o seu interesse. Do Sótão, Leonardo saíu com um vinil de Classix Nouveaux, pela nostalgia que o mesmo suscitou, remontando-o "aos tempos de infância em que costumava ouvir géneros como New Wave e Bossa Nova em casa dos pais e de amigos dos pais." É por esta razão que os discos e a secção de música em geral costuma ser aquilo que Leonardo mais procura nas lojas de antiguidades: "acabo por enverdar numa procura de velhos e esquecidos sons de uma maneira fora de consumismo comum. Quantas vezes me aconteceu já encontrar peças únicas, como um microfone velho, mas com um timbre incrível, por um preço irresistível, ou discos de vinil com capas incríveis?"


Voltando a Paulo, quando lhe peço que me conte uma história que o tenha marcado durante estes anos no ramo, Paulo conta-me aquela que é “a história mais bonita que ouvi”: a história de “um médico radiologista aqui do Porto que colecionou revistas durante toda a vida. Hoje, com 80 anos, já não consegue ler nem dedicar-se à coleção. Tem dois filhos, mas nenhum deles não dá valor à coleção, talvez até possam pensar que se trata de lixo. Então, acabou por vender a coleção, para garantir que fica em boas mãos: mãos que a cuidem, que a continuem e que lhe continuem a dar valor. No fundo, abdicou do seu gosto pessoal apenas por já não ter forças para ele; por já não conseguir ver. Já não lia, não precisava das revistas.” Há realmente algo de romântico nesta atitude ou decisão de desapego a algo a que viveu apegado durante anos a fio, de entrega e dedicação, pelo que não se trata de abdicar de uma mera coleção, mas também dessa experiência de colecionar e dos valores e sentimentos a si intrínsecos. Talvez por esta razão é que também Paulo confesse: “o meu gosto não é vender; é comprar! Há coisas que me deixam triste quando são vendidas, porque ganho-lhes estima.”


Como se essa história se tratasse, em simultâneo, de um epitáfio, por ser póstuma a alguém a quem já não pertence, e de um berço, ao ser entregue e confiada a novas mãos.

Esta reflexão transporta-me para o Animismo, essa filosofia antropológica, que remonta ao período paleolítico para explicar a essência das primeiras expressões religiosas, e que, em sentido lato, prevê que toda a existência, tanto humana como material, seja dotada de algum tipo de sensibilidade. Como se, à semelhança do Homem, também os objetos tivessem múltiplas facetas, cada uma atribuída pelas novas mãos que lhe pegam. Convido Paulo a refletir comigo sobre a filosofia, ao que ele me confirma que “se os objetos têm vida? Ai têm, têm. Lá isso têm”. Se transladarmos o Animismo para este lado ocidental, talvez este antiquário o possa protagonizar. É que o espólio nele presente é feito de uma textura que materializa o passar dos anos. Como se uma espécie de rugas que esse passar e pesar dos anos vão oxigenando nos postais amarelecidos, nos livros que já fedem a tempo, nas maquinarias enferrujadas, e restantes raridades que Paulo Machado vai conservando. À semelhança do que acontece nos rostos humanos, cujas rugas vão contando a história de quem as tem. A diferença é que, perante a impossibilidade de serem os objetos a contar-se a si próprios e a história das suas rugas oxigenadas, é o rosto que os coleciona e cuida o responsável por contar essa história até, em última instância, a transferir para as mãos do desconhecido. Há algo de romântico no facto de esses objetos que nos chegam às mãos serem simultaneamente uma presença e uma ausência; uma familiaridade e um desconhecido: presença e familiaridade para quem os possuiu e que não se sabe quem é; ausência e desconhecido para quem os recebe. Como se a história desses objetos se assemelhasse a Matrioscas, havendo sempre a possibilidade de novas utilizações que renovam essa história. Como se essa história se tratasse, em simultâneo, de um epitáfio, por ser póstuma a alguém a quem já não pertence, e de um berço, ao ser entregue e confiada a novas mãos.

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