Desde que a morte de George Floyd nos EUA tornou-se estopim para várias manifestações pelo mundo, Portugal viu-se obrigado a refletir sobre a pauta da igualdade racial em seu território, onde casos de violência policial pairam sobre a população não-branca
Por: Carolina Lima e Aldenora Cavalcante
Foto: Fernanda Nicolini
Vinte e cinco anos após o assassinato de Alcindo Monteiro, a população de Portugal ia às ruas gritar que Vidas Negras Importam. Mobilizados após a morte de George Floyd em Minneapolis, Estados Unidos, protestos pedindo igualdade racial e o fim da violência policial eclodiram pelo mundo, incluindo na cidade do Porto, Portugal. Organizada por entidades antifascistas e anti-racistas, a manifestação levou mais de mil pessoas à Avenida dos Aliados.
Os muitos cartazes em meio a multidão tinham mensagens variadas, entre lembranças às vítimas do racismo, como Claudia Simões, o menino Miguel, o adolescente João Pedro Matos e a vereadora carioca Marielle Franco. Além de críticas aos governos de Jair Bolsonaro, no Brasil, e Donald Trump, nos EUA. No entanto, o que mais chamou a atenção foram as mensagens que apontavam a responsabilidade de Portugal na luta contra o racismo e a discriminação. Se o mito da simpatia e benevolência dos portugueses com estrangeiros ainda perdurava no consciente popular, a tarde de 6 de junho acabou com qualquer dúvida: Portugal é, sim, um país racista e xenofóbico.
Foto: Wilsians Humphreys
Minutos antes do protesto começar na Aliados, usuários da rede social Twitter alertavam manisfestantes para a presença de um grupo ultra-direitista e neo-nazista perto da estação da Trindade. Portando bandeiras com símbolos nazistas e provocando quem passava em direção à concentração da passeata, os integrantes do chamado Escudo Identitário deixaram claro sua opinião sobre qualquer pessoa que não fosse branca e europeia. Uma faixa com os dizeres "a nacionalidade não se compra, herda-se" afastava qualquer cidadão com senso crítico, temerário de um confronto físico com grupos radicais. A poucos metros da cena, carros da PSP observavam o movimento sem qualquer tentativa de intervenção.
Racismo e xenofobia em Portugal
Em Portugal, a história do racismo se mistura com a xenofobia, como deixa claro o cartaz do Escudo Identitário. Uma dicotomia que assombra o país, ao se ver dependente dos imigrantes para mão de obra e crescimento populacional, mas ainda saudosista do lema 'Portugal para portugueses', apenas uma maneira sutil de dizer "para brancos". Desde a década de 1970, quando o movimento migratório cresceu de forma notável, pessoas não-brancas dos países que eram antigas colônias, sem contar o povo Roma, sofrem preconceito nas ruas. Mesmo portugueses negros sofrem com a mentalidade de que 'se não é branco, não pode ser português'.
Os últimos dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatísticas (INE) sobre práticas imigratórias mostram que a taxa de crescimento da população portuguesa foi positiva pela primeira vez em dez anos, tudo graças a migração. As estimativas apontam que no final do ano passado, residiam em Portugal 10.295.909 pessoas, 19.292 a mais do que em 2018.
Segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), dados mais recentes apontam que o ano de 2018 registrou a maior quantidade de estrangeiros em Portugal desde o surgimento do SEF, em 1976. Foram quantificados quase 500 mil cidadãos com título de residência válido, um aumento de 13,9% em comparação ao ano anterior, 2017. Em relação aos países que mais imigraram, a nacionalidade brasileira mantém-se no topo da lista, totalizando 21,9% do total, seguido de Cabo Verde (7,2%), Roménia (6,4%) e Ucrânia (6,1%).
Se imigrantes são parte do cotidiano português há tanto tempo, como ainda há espaço para demonstrações racistas na sociedade portuguesa? A resposta pode ser encontrada, como tantas coisas, na história. Portugal foi um país colonizador e lida até hoje com as consequências do passado imperialista, apenas de forma diferente das nações que sofreram com as invasões e conquistas europeias. Como um cartaz dizia na manifestação de 6 de junho, é preciso que se ensine a verdade sobre a colonização nas escolas.
O ideário português sobre a época dos Descobrimentos fala apenas sobre as grandes inovações e o acréscimo à história lusa, descartando qualquer debate sobre as consequências da presença portuguesa nos países colonizados. A mentalidade 'colonizador x colonizado' não é questionada e se mantém até os dias de hoje, demonstrada apenas de maneiras diferentes: negros e imigrantes sofrem penas mais graves no sistema judiciário; são preteridos ao tentar arrendar apartamentos ou buscar vagas de empregos com concorrentes brancos igualmente qualificados, etc. O racismo está enraizado na sociedade portuguesa, que ainda clama ser diferente dos EUA por não ter histórica de políticas segregacionistas.
Neste cenário, tanto o Brasil quanto Portugal sofrem do mesmo mal: uma vez que nunca houve na história dos dois países uma Jim Crow ou apartheid como nos EUA ou na África do Sul, o mito da democracia racial se perdurou. Para abrir os olhos da população, o ativismo recorreu justamente à comunicação social e ao jornalismo: um dos exemplos mais longevos é a SOS Racismo, organização criada em 1991 numa reunião entre sindicatos de jornalistas e do conselho Deontológico.
"Fomos acusados por muitos de que nós é que inventamos o racismo em Portugal. ‘Estava-se tão bem, não havia nada, e agora vêm estes gajos a dizer que há racismo.’ Era este o discurso", revela José Falcão, um dos líderes da SOS Racismo, ao Público. O público geral português simplesmente não queria saber nem ouvir falar sobre racismo, era incômodo demais.
De acordo com a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), foram registrados em 2018 apenas 346 queixas. Apesar da baixa quantidade se considerar a população portuguesa e seu histórico de racismo e xenofobia, a Comissão acrescenta que este número corresponde a um aumento de 93,3% de registros em comparação ao ano anterior. Os maiores números de ocorrência foram feitos no distrito de Lisboa, 32,7%.
Se considerarmos o fator de discriminação, a origem racial e étnica é a queixa mais registrada, sendo 22,5% do total. Seguido da nacionalidade (19,1%) e cor da pele (17,9%), como podemos ver no infográfico abaixo:
Tal como aconteceu em 2020, foi necessário um caso tão grave que seria impossível de ignorar para que o preconceito racial fosse estampado nos veículos de comunicação de massa. Em 1995, Alcindo Monteiro foi brutalizado e assassinado por um grupo de skin-heads, numa ação claramente motivada pela cor da pele de Alcindo. Um assassinato tão cruel que não teve saída: a pauta do racismo finalmente virou mainstream.
Nestes últimos 25 anos, coube ao ativismo mostrar que o preconceito não mora apenas nas agressões físicas ou verbais, mas também nas micro-agressões diárias, de forma institucionalizada. Ainda assim, o cidadão português médio só se dava conta do problema diante de casos incontestáveis, como Alcindo Monteiro, Cláudia Simões, Moussa Marega ou até mesmo Igor Homenyuk.
Associações como o SOS Racismo, Plataforma Gueto, Afrolis e Femafro reuniram-se no final de 2016 para denunciar a falta de políticas públicas voltadas para o combate ao racismo em Portugal, sobretudo quando o governo português adota uma postura 'holística' na questão do preconceito racial, presumindo que seja um fenômeno global e deixando de colher informações étnico-raciais no Censo que seriam a ferramenta inicial para a implantação de políticas voltadas para os grupos minoritários.
A denúncia feita pelos ativistas em 2016 parece não ter surtido efeito: em comunicado divulgado no último 18 de junho, a SOS Racismo revelou que a Comissão para a Igualdade Contra a Discriminação Racial (CICDR) não se reúne há um ano, demonstrando “incompetência, negligência e falta de interesse político do Estado em assumir o combate contra o racismo com seriedade e como uma questão essencial no combate às desigualdades”, segundo o comunicado.
A deputada Beatriz Gomes Dias também criticou a falta de políticas públicas voltadas para as minorias raciais, em discurso no plenário logo após as manifestações de 6 de junho. Segundo a deputada do Bloco de Esquerda, 80% dos processos instaurados pela CICDR após queixas foram arquivados, e que nos últimos 10 anos, apenas 1,7% das queixas iniciais resultaram numa condenação.
Vídeo: ARTV
“Ao afirmar que as vidas negras importam, estamos a sublinhar que a discriminação étnico-racial, que a desigualdade e exclusão social historicamente construída e mantida, afeta e condiciona desproporcionalmente a vida das pessoas pertencentes às comunidades racializadas. Afirmar que as vidas negras importam é exigir políticas públicas que reconheçam e removam os obstáculos colocados pelo racismo institucional. Políticas públicas de efetivo combate à discriminação racial que garantam o acesso, em igualdade, a salário digno, à habitação, à educação, à saúde, à justiça", salientou Beatriz Gomes Dias.
Colonizadores ao chão
Nas últimas semanas, observou-se que o movimento em torno da causa anti-racista virou-se contra os símbolos da era colonial escravocrata: as estátuas. Por todo os lugares, monumentos erguidos em homenagem do rei Leopoldo, na Bélgica, à Edward Colston, na Inglaterra, foram derrubados em protesto às ações que os homens ali representados cometeram: genocídio racial na República Democrática do Congo e tráfico de escravos, respectivamente.
O discurso chegou a Portugal na última semana, quando uma estátua do Padre Antonio Vieira em Lisboa foi pichada com os dizeres 'descoloniza'. A resposta da sociedade foi imediata, variando entre críticas ('vandalismo não é aceitável') e exageradas ('ameaça à história de Portugal'). A verdade é que o movimento para retirada de estátuas de homenagem aos personagens racistas da história mundial não tem como objetivo apagar a história dos seus respectivos países, mas sim questionar a homenagem a símbolos declaradamente preconceituosos realizados no presente. As estátuas não foram erguidas séculos atrás, quando o racismo era bem aceito na sociedade, e sim há poucos anos, quando o bom senso já determinava o que se pensar do racismo e da dor que aquelas figuras causaram a tanta gente.
Galeria: Estátuas foram alvos de protesto por todo o mundo. Na ordem, Padre António Vieira, em Lisboa (Nuno Vox); Edward Colston, em Bristol; James Cook, em Sydney; Rei Leopoldo II, em Bruxelas; Robert Milligan, em Londres; Cristóvão Colombo, em Boston (AP)
A comoção da sociedade civil diante da hipótese de retirada de estátuas foi maior do que nos casos noticiados de vítimas de racismo. Muitas foram as opiniões reproduzidas nas colunas dos jornais portugueses acerca do caso da estátua de António Vieira, e não faltou espaço para defesas da manutenção de monumentos portugueses associados à figuras envolvidas no colonialismo e na escravidão. Os brancos portugueses veem os protestos contra as estátuas como um ataque a eles mesmos, e por isso relutam a debater o caso e preferem simplesmente ignorar a questão, usando de estratégias como o whataboutism: "se removermos esta estátua, onde paramos? Vamos derrubar a Torre de Belém?". E assim, os ataques racistas sofridos pela sua população seguem sendo ignorados.
"Negar a existência de um problema, no presente ou sequer no passado, é a primeira das estratégias da resistência à mudança, à assunção de responsabilidades, a que se faça justiça. E as estratégias são infinitas: negar-se que há discriminação étnica porque o que há é discriminação de classe (ou de rendimento) é suprimir-se todos os problemas de desigualdade num problema que se considera banal - e, de tão banal, se presume naturalizado, isto é, aceitável."
"Recusar perceber como se interseccionam e se acumulam as várias formas de desigualdade é ajudar a reproduzi-las a todas", afirma o historiador Manuel Loff.
Não se trata de apagar a história de Portugal nem de abolir o legado das figuras ali representadas, muito menos de um 'racismo reverso', como gritam alguns grupos na internet. Trata-se do simbolismo que essas estátuas representam, ideais que não tem mais espaço no século XXI e ainda assim encontram ressonância tanto em grupos extremistas como nas instituições, ainda que de forma velada. É hora de reescrever a história para que, em alguns séculos, as novas gerações possam olhar para 2020 como o ano em que deixamos para trás o racismo.
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