O calendário marcava a primeira semana de março do ano 44 d.R.E. O vírus parecia ainda intangível , porque percecionado como algo mais perto de longínquo do que dos pés. Não se antevia a corrida desenfreada ao papel higiénico ou aos Benurons; não se previa que os dados atualizados no Boletim Nacional de Saúde viessem a integrar as conversas à mesa. A ideia de um país paralisado pelo decreto de Estado de Emergência parecia residir apenas no ano zero R.E. Que é como quem diz: em 1976, quando o intento extremista de 25 de novembro foi dominado pelas forças armadas lideradas por Ramalho Eanes. À semelhança de várias intempéries que se estudam na escola e que parecem ficar imaculadamente cristalizadas no papel dos livros que se lê e no passado, como vaticínios adormecidos que não voltam a ser empíricos, e que por isso nos levam a não suspeitar vir um dia a ser seus protagonistas. O que parece irónico: não deveria o papel da História ser permitir antever essas mesmas intempéries e, assim, precaver o Homem e estimular a sua imunidade, ao invés de o anestesiar?
Ainda imunes a estes juízos filosóficos e descomprometidos com o curso do vírus, Clara e Miguel, velhos amigos e, mais recentemente, ela jornalista e ele fotógrafo, tinham combinado encontrar-se no fim de cada um dos seus afazeres prescritos para aquela tarde de março: Clara tinha uma entrevista com um alfarrabista; Miguel tinha um projeto de Fotografia, algo experimental, para o qual tinha que recorrer a objetos estranhos no processo da captação de imagem. Encontraram-se na Rua das Flores, mais vazia do que o costume, mas frequentada, ainda assim. Decidiram descer até à Ribeira e, pelo caminho, uma certa pontada de voyeurismo obrigou-os a espreitar para o interior de uma galeria de Arte. Afunilaram as retinas numa réplica d’Os Amantes, de Magritte. Não entraram. Afinal de contas, a galeria continuaria aberta no dia seguinte, ou poderiam lá voltar depois. Prosseguindo caminho, também não pararam para ouvir os músicos que, diariamente, afloram a rua das Flores. Afinal de contas, os músicos continuariam nessa rua no dia seguinte, a cantar as mesmas músicas, pelo que poderiam parar para ouvir no dia seguinte ou noutro qualquer dia do futuro, que davam por garantido. Ao chegar à Ribeira, Clara lembrou-se de um espelho antigo que tinha, por acaso, guardado na mala, e que poderia contribuir para o projeto fotográfico do amigo, visto rematar na a ideia de olhares alternativos, se utilizado estrategicamente. Assim fez Miguel: aconchegou o espelho debaixo da lente, movimentando-o conforme os ângulos e perspetivas pretendidas. O resultado foi uma série de fotografias de um Porto desdobrado; de uma vida ribeirinha desdobrada; de vozes desdobradas.
Apesar desta ideia aparentemente enevoada e despreocupada sobre o vírus, na verdade, suspeitava-se de serem transparentes e transponíveis os muros que impediam o vírus de circular. Afinal de contas, esses muros são os muros da Globalização, pelo que não poderiam ser de outra maneira se não transparentes - ou não fosse a livre circulação de bens e pessoas a premissa basilar desse fenómeno, que no mês passado nos permitiria ir com tanta facilidade "logo ali" aos Estados Unidos, e que hoje dificilmente nos deixará voltar à nossa Terra, mesmo que esta fique, realmente, "logo ali". Por ser do Porto, a preocupação de Miguel era menor do que a de Clara, que teria que projetar a estratégia mais segura de regressar ao Algarve, antes que o vírus despoletasse.
Clara conseguiu sair do Porto antes de os transportes serem também reféns do vírus. A imprensa ainda não tinha começado a questionar a inoperância ou ineficiência das máscaras. Assim, como uma viagem implicava a proximidade inevitável dos passageiros, também Clara colocou a sua, num processo árduo, porque estreante: o de colocar a máscara, baixar a máscara para conseguir falar com a mãe ao telefone, e tocar numa série de coisas inconscientemente, eventualmente contaminadas, antes de levar de novo as mãos à máscara para a reposicionar.
Entretanto, já Miguel tinha revelado as fotografias tiradas no último dia da liberdade que não sabia ter. É irónico como, ainda que sejamos livres, a noção de se ser livre apenas emerja quando a liberdade nos é fuzilada. Parece um contrassenso o facto de a sensação de liberdade só ser percecionada quando ausente. O que não é de todo inusitado: afinal, é quanto sentimos a sua ausência que conseguimos fazer um contraponto com os tempos em que a tínhamos na palma da mão, ainda que pouco conscientes de a termos. Por ser algo naturalizado, já quase fisiológico e, portanto, irrevogável. Talvez a nostalgia seja isto: sentir saudade de tempos em que éramos livres, sem sabermos.
É irónico como a vida e a morte andam sempre de mãos dadas, mas, agora, enquanto a primeira fica retida, a segunda continua a encher as estatísticas.
Da janela sulista, Clara ligou a Miguel para saber como estava a ser a adaptação. Enquanto Miguel não atendia, Clara espreitava para a televisão da sala, que nada mais era se não , à imagem dos restantes ecrãs, um trampolim e uma câmara de eco, da qual se serviam políticos e jornalistas para atiçar ainda mais um certo populismo, tirando proveito do terreno fértil que é o caos social e psicológico dos portugueses. O ecrã projetava os números dos óbitos crescentes. É irónico como a vida e a morte andam sempre de mãos dadas, mas, agora, enquanto a primeira fica retida, a segunda continua a encher as estatísticas.
Miguel atendeu. Recordaram ainda o café que tinham adiado com o Carlos. Afinal, há sempre tempo depois- seja para o mais frívolo café, seja para colocar em prática uma ideia ou um projeto. Fica sempre para depois. Enquanto o homem contemporâneo não se aperceber de que é improvisada e artificial a fadiga que serve de argumento aos adiamentos, continuará a ser tudo sempre para depois. Adiamos, adiamos, sempre na expectativa de passar para um qualquer outro dia futuro, sem supor que, quando esse qualquer dia chegar, seja a saúde pública o imperativo que nos força a adiar.
À semelhança dos tocadores da rua das Flores, pelos quais Clara e Miguel passaram, sem parar para ouvir. O que será feito deles, agora? Ter-se-ão dado à moda dos lives a que vários artistas recorrem para mitigar a distância do público? E que sustento terão agora?
Ao recordar a imagem da Ribeira desdobrada, Clara teve uma epifania. Pensou que talvez as fotografias pudessem ser uma metáfora para a situação.
Clara lembrou-se ainda d’Os Amantes, de Magritte, que tinham espreitado na Galeria de Arte, sem ter entrado, porque haveria mais dias para tal. Como se a obra tivesse sido um presságio, e o lençól que separa os amantes fosse uma metáfora para o distanciamento social que manda a lei e nos obriga a reforçar a responsabilidade tanto por quem é nosso, como por quem nada nos diz. No fundo, este advento acaba por reforçar o questionamento de certas noções apriorísticas, como o público e o privado; o perto e o longe; que nada mais são que conceitos que se esfumam e, por isso, abanam e questionam o homem contemporâneo.
Clara perguntou a Miguel pelas fotografias daquela última tarde. Ao recordar a imagem da Ribeira desdobrada, teve uma epifania que partilhou com Miguel. Pensou que talvez as fotografias pudessem ser (mais uma) metáfora para a situação. Talvez a única alternativa para subsistir de forma menos pesada ao advento do vírus fosse virar a cassete e olhar para as coisas que damos por assumidas de uma outra perspetiva. Talvez a solução fosse mudar a lente e focar a situação de uma forma que nos deixasse mais leves. Uma teoria muito pouco sublunar e isenta das nuances profundas que o vírus injetou em matérias que são sustentáculo e força motriz da subsistência humana. Ainda que incipiente, tenra ou preliminar, era uma teoria catártica e que seduzia Clara. Já Miguel, mais "terra-a-terra" e de e razão e sapiência afinadas, esconjurou Clara por estar a romantizar um status quo que lhe condicionava e comprometia a prosperidade da carreira. Alegava ele que tinha sido para fotografar outros artistas que se tinha tornado fotógrafo, pelo que a suspensão da vida desses conduziria à suspensão do seu próprio trabalho.
Clara e Miguel, cada um à sua maneira, são duas personagens-tipo, representativas da falta que o mundo além portas faz a quem tinha e tem projetos por levar a cabo, mas se vê de mãos atadas. No caso de Clara, que está refém de entrevistas telefónicas desde que quarentenou, arrelia-lhe a impossibilidade do confronto real com o entrevistado. Como não só o que sai da boca fala, mas também toda a restante panóplia de elementos paratextuais que contribuem para o que se fala, arrelia-lhe não conseguir ler a sobrancelha que o entrevistado franze quando não acha piada a uma pergunta; os silêncios; as respirações. Arrelia-lhe que o distanciamento e o isolamento que a impede de ir para o terreno, essa atitude sedentarista e quase axiomática que sempre contestou quando imposta na redação, seja agora um imperativo coletivo ao qual tem de ceder. Arrelia-lhe ainda, não fosse ela suspeita na matéria, o overload de cocktails onde se misturam a informação e a desinformação, favorecendo a fertilidade da proliferação das fake news e quase obrigando o público a utilizar um bisturi para as separar.
Talvez a resiliência dependa da capacidade de adaptação e de auto-regulação de cada indivíduo. Talvez um dos proveitos de toda esta conjuntura seja a possibilidade de analisar, psicológica e cognitivamente, a forma como se canaliza essa resiliência para a criação. Mas, adaptação e resiliência são termos algo díspares. Por adaptação, entenda-se a adesão às vídeo-aulas pelo universo académico; os serviços de take-away e as entregas ao domicílio por restaurantes e supermercados; o reforço do comércio online por certas empresas, e o início desse tipo de comércio, para outras. Já a resiliência pressupõe uma desenvoltura mental que conduza a uma espécie de salto interior sobre a consciência da falta de liberdade, capaz de transformar essa consciência num estímulo à criatividade. Como se uma espécie de exorcismo à liberdade, através do qual se converte o tempo morto num empurrão à criação.
Depois da chamada e dos devaneios metafísicos trocados com Miguel, Clara deixou-se permanecer à janela que lhe era, para além de baluarte protetor, a única janela possível da infinitude. Fiel ao voyeurismo sentido quando passava por qualquer galeria de Arte do Porto, dessa janela espreitou. Foi então que reparou na oliveira centenária do vizinho da frente; nas duas crianças que brincavam na casa de árvore construída no quintal, e que riam, isentas da consciência que perceber as malícias e as asperezas do mundo exige. Clara invejou-as, por momentos. Entretanto, reparou que o seu reflexo no vidro da janela se misturava com os reflexos das janelas dos vizinhos, também translúcidos, à semelhança dos muros (fronteiras) pelos quais o vírus passava, e que deixavam ver os comportamentos de quem não conhecia; como se, à semelhança das fotografias que desdobravam o Porto, o seu reflexo fosse também desdobrado; produto do cruzamento de todos esses reflexos. Essa mistura de reflexos valeu a Clara a constatação de estarem todos juntos: doutos e leigos, patrões e empregados, inquilinos e senhorios, todos feitos da mesma massa frágil, porque propensa à contração do vírus; todos juntos na mesma luta que era o confronto com o medo; a mitigação da incerteza iminente; a sobrevivência à adaptação.
Talvez essa fragilidade exista apenas no que toca à propensão à contração do vírus, e, num patamar abstrato, possa ser acendalha à transformação de fraqueza em sensibilidade. Ao contrário do slogan mais onírico do que motivacional que prolifera no ciberespaço, não, não se acredite que vai ficar tudo bem. Isto, pelo menos, se considerarmos que “tudo bem” significa “tudo igual” ao que havia antes do primeiro pé na quarentena. Ainda assim, quando o mundo se recompuser e pudermos voltar a andar na rua sem endereçar um olhar suspeito aos circundantes e fugir deles como se de mortos-vivos se tratassem, será essa sensibilidade que nos permitirá valorizar o que damos por garantido. Para além da ressaca financeira, política e etecéteras não menos fraturantes, eventualmente somar-se-ão mazelas psicológicas, as quais já se vão fazendo sentir. Olhe-se para o exemplo de Clara, que, numa altura normal, talvez tivesse olhado paras as fotografias do Porto desdobrado enquanto um mero produto esteticamente bem conseguido, e não enquanto um contraponto metafórico para a situação atual. Mas, reversamente, talvez numa altura normal também não tivesse parado Clara à janela, e apreciado aquela oliveira centenária que sempre lá estivera mas que, ou precisamente por sempre lá ter estado, nunca tinha contemplado.
Apesar de o mundo estar desvirtuado, pervertido e a preto-e-branco, que haja, pelo menos, um reverso e uma forma alternativa de olhar para ele, à semelhança das fotografias tiradas por Miguel. Talvez lhes valham as fotografias; talvez venham a ser as forografias que, melhor que Clara e Miguel, contarão a história deste advento à geração que vem, (re)ensinando-a a olhar para o que assume por garantido através de lentes diferentes. A substituir a visão arreigada da noção de permanência por uma destreza que permita lidar com a contínua transformação de seres e fenómenos, a qual pressupõe um fim. Tal como, mais cedo ou mais tarde, este vírus.
Fotogaleria e Crônica por Ana Rita Rodrigues.
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